quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Cena para um figurino em Praga!

idealização, figurino e fotos: Desirée Bastos
roteiro e performance: Suzana Nascimento
Este trabalho será apresentado na Quadrienal de Praga 2011.
É a semente do projeto que surgiu do encontro entre uma cenógrafa/figurinista e uma atriz/contadora de histórias.
Estaremos também no Festival de Curitiba nos dias 8, 9 e 10 de abril.
PequenaGrandeCia.
O que fazer?
Essa foi minha questão ao ver o figurino pela primeira vez. Quando levei-o pronto para casa, decidi não fazer nada, pelo menos por enquanto.

Lembro-me do momento em que me sentei em frente a ele em minha sala para um encontro mais concentrado, após a euforia do contato inicial, quando experimentei a roupa pela primeira vez. Ficamos ali, parados, um em frente ao outro, silenciosamente. Observei-o sem pretensões de criar qualquer coisa que lembrasse uma cena. Apenas deixei que sua presença me afetasse, me remetesse naturalmente a lugares que poderiam sugerir pistas para o início do trabalho. Muitas ramificações surgiram desse momento, uma diversidade de caminhos foram apontados apenas por essa troca silenciosa. Dúvida. Por onde seguir? Permiti a mim mesma continuar a experiência sem ter que tomar decisões racionais imediatas.

Após esse momento, decidi estreitar o contato. Comecei a manipular os elementos do figurino, experimentar diversas formas de evolução de cada pequeno objeto, admitir o estranhamento causado pela dureza da cápsula/tronco que limitava meus movimentos. Assumi que o simples deslocamento daqueles objetos de suas funções originais já criavam uma outra camada de apreensão de significados.

Encontrei ainda outros planos quando comecei a brincar de usar os objetos de novas maneiras, como quando tomei o disparador da máquina fotográfica e comecei a “fumá-lo” como se fosse o bico de um narguile - pela simples associação formal.  Decidi adotar esses dois caminhos concomitantemente: aquele da interpretação do objeto com seu significado original - apenas deslocado para uma outra trama de sentidos - e este, em que a pura forma do objeto remete a outros, gerando novos significados. A partir daí, as possibilidades se multiplicaram vertiginosamente. Abismo. Aquela pergunta “por onde seguir?” foi elevada a uma altíssima potência. Anotei todas as imagens e os jogos que surgiam de minhas experimentações e fui arquivando-os, dia após dia, acumulando memórias do processo.

Memória. Essa tornou-se a palavra-chave que norteou a criação ou, para além disso, tornou-se o seu tema. Todas as imagens que surgiam, pela simples observação do figurino ou pelas relações criadas com ele a partir da ação, de uma forma ou outra, atrelavam-se a algum pedaço de memória. Isso porque o figurino em si, em minha acepção uma espécie de assemblage memorial, oferecia a mim uma série de mecanismos disparadores de lembranças, como cordas de caixas de música brotando dos seios, máquina fotográfica situada no lugar do coração, abajur/arquivo de fotos giratório, luz que clareia ou apaga imagens do passado, se não me falha a memória...

Esse procedimento escolhido, do registro escrito, levou-me naturalmente a engendrar um roteiro, não linear, não ocupado em contar uma única história. Meu intento era criar um norte para a sequência de ações, mas que contivesse espaço para o acaso. Um exemplo disso seria a leitura de fotos/cartas de tarô: trabalhei com as fotos voltadas para o chão, colocadas ali aleatoriamente, e escolhidas ao acaso pelas mãos de manequins. Minha “leitura” estava condicionada a este trajeto desconhecido, revelado no momento em que eu desvirava as fotos.

A convivência com a roupa durante dias gerou uma intimidade que já ultrapassara o momento do encontro estético, uma espécie de aprofundamento da relação que acendeu muitas lembranças, muitas histórias, como se cada item do roteiro abrisse uma porta para infinitas narrativas que talvez tenham afastado o resultado – se é que era esperado um resultado - da sua intenção primeira: a potência do objeto presente.

Muitas reflexões relevantes, no entanto, surgiram desse procedimento escolhido, como: é possível inventar memórias? É possível editá-las, como fazemos com as máquinas, quando deletamos o que não serve? O que não serve? Até que ponto podemos contar a história de uma pessoa a partir de seus objetos?

Mesclei memórias bem recentes e dolorosas à ficção construída no processo, num fluxo de penetrações mútuas que geravam um terceiro elemento, já sem limites aparentes entre invenção e ocorrência; um misto de significantes e significados, submetidos à luz oscilante de um velho abajur amassado.

S.N.

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